Saturday, September 15, 2007

A Ilha dos Dragões



Quando meu avô me contava que não existiam praias de areia na Ilha da Madeira, confesso que para mim era muito difícil imaginar. Mas de fato, não há praias arenosas na Ilha, salvo duas que foram artificialmente construidas...

Esquerda: praia de seixos em Funchal. Direita: vista do porto de Funchal

Ha cerca de um mês e meio, estive na Ilha da Madeira, realizando um sonho acalentado por pelo menos duas décadas. Trinta e cinco horas de viagem desde Cape Town, com conexão em Londres. Valeu cada segundo.

A Madeira é um território ultramarinho de Portugal, que denominam "Região Autônoma". Para quem não está familiarizado com a geografia da Macaronésia (o conjunto de ilhas do Atlântico Norte que inclui, além da Madeira e Porto Santo, as Ilhas Canárias e o Arquipélago dos Açores), é difícil imaginar que aquela minúscula ilha ("parece uma cagadinha de mosquito no mapa", nas palavras de meu avô) a oeste da costa da Mauritânia, seja um lugar tão mágico.

A Madeira foi oficialmente descoberta pelo navegador João Gonçalvez Zarco, a serviço da coroa do então rei de Portugal, Infante Don Henrique, o Príncipe Navegador. No entanto, os gregos antigos já sabiam de sua existência. Pitágoras a chamava de "Ilha dos Dragões", embora nenhum réptil mitológico cuspidor de fogo lá existisse, e sim uma árvore chamada "Dragoeiro", que fornecia um corante vermelho-fogo largamente ultilizado na tintura de tecidos no mundo antigo. Mesmo assim, há evidências que povos ainda mais antigos, da idade do bronze, já visitavam a região, embora nunca tenham se assentado por lá.

Mas, muitos séculos depois, os portugueses decidiram lá ficar. Na realidade, a Madeira foi um grande laboratório, onde os europeus pela primeira vez "ensaiaram" o processo de ocupação de territórios fora da Europa que depois viria a ser conhecido como colonização. Mas os portugueses tiveram dificuldade para adentrar a Ilha. Em parte por causa da ausência de praias de areia e áreas abrigadas, em parte por conta da densa floresta que recobria a Ilha (daí o nome "Ilha da Madeira"). A segunda dificuldade eles resolveram de um modo radical aos olhos do mundo atual, mas prático na época: eles atearam fogo na floresta. Pior: o fogaréu se extendeu por sete anos seguidos. Me faz pensar que talvez eles temessem a possível existência de uma população nativa, ou mesmo bestas e monstros habitando a floresta impenetrável.... Pelo jeito a colonização da Ilha foi amplamente financiada pelos Templários, dado que a Cruz de Malta é emblemática, aparecendo no brasão da cidade do Funchal e em muitas igrejas, onde substituem as cruzes tradicionais.

Presença emblemática da Cruz de Malta: na Capela de Santa Catarina e no brasão da cidade do Funchal

Os colonos da Madeira vieram principalmente do sul de Portugal, da região do Algarve. Na ilha os portugueses introduziram os primeiros engenhos de açúcar, as vinhas que viriam a dar origem ao famoso vinho Madeira e bananeiras importadas da China. Todas essas culturas vingaram, pois o solo da ilha, de origem vulcânica, era (e ainda é) extremamente fértil, sustentando a ecomomia por muito tempo. No entanto, com a posterior colonização do Brasil (com um território infinitamente maior, e portanto com muito mais produção) a economia da Ilha viria a sucumbir (principalmente no que se refere a cultura da cana-de-açúcar).

A crise agrícola viria a ser sanada muitos anos depois com o desenvolvimento do turismo. A Madeira foi um dos primeiros destinos turísticos frequentados pelos europeus. Talvez por isso o povo madeirense seja tão amigável, prestativo e acolhedor. A Madeira foi, por muitos anos, a única parada dos navios que faziam a rota entre a Cidade do Cabo e Londres. Isso explica o porquê da imensa colônia madeirense aqui em Cape Town. A atividade turística também alavancou o aparecimento de dois valorosos produtos da Ilha: o famoso vinho Madeira, forte e encorpado, que passou a ser muito apreciado pelos europeus, e o bordado da Madeira, item obrigatório no enxoval das noivas inglesas dos século XIX e meados do século XX.

Pois bem. Nessa ilha tão pitoresca, quase perdida no meio do oceano, surgiu o ramo português da minha família. Os "Pinecos". Não sei muito sobre a origem dos Pinecos na Ilha, mas provavelmente se originaram das famílias de colonos vindos do Algarve. De início os Pinecos tinham o sobrenome "de Freitas", o qual depois foi acrescido de "Silvestre", que na realidade não é sobrenome, e sim uma homenagem que os Madeirenses fazem a São Silvestre quando a criança nasce no 31 de Dezembro. Alguém lá no passado resolveu homenagear um pai ou avô e colocou o Silvestre no registro do nome. E ele ali ficou... Pineco eu sou da parte do meu bisavô. Da parte da minha bisavó, seria da família "do Patrocínio", conhecidos como "Nocas", dos quais pouco sei.

Os Pinecos e outras famílias (os Nocas, os Estrelas, os Bandidos, etc...) habitavam uma espécie de fazenda que se extendia até a beira-mar. Alguns eram donos de terra, outros trabalhavam em regime de arrendamento. A fazenda ficava em uma região costeira conhecida como Lido, por sua vez inserida na zona de Nossa Senhora da Ajuda que por sua vez faz parte da Freguesia de São Martinho. No Lido a maioria era Pineco, e quando não eram Pineco, eram compadres e comadres. Os casamentos se davam ali mesmo entre os conhecidos da comunidade... Abaixo, uma foto minha junto ao Ilhéu do Gorgulho, marco importante para os Pinecos (para um Pineco ser considerado apto a ir para mar, ele tinha que nadar do ilhéu até a costa em tenra idade):

Ilhéu do Gorgulho. Lugar ancestral...

Por muito tempo pensávamos, minha mãe e eu, que já não tínhamos mais parentes vivendo na Ilha. Pelo que sabíamos, todos tinham deixado a Madeira. Porém, coisa do destino, acabei por descobrir que temos sim parentes vivendo lá. Primos em primeiro e segundo graus da minha mãe. A estória desse achado é longa, por isso vou resumir aqui: encontrei em uma comunidade do Orkut relacionada a Ilha da Madeira um tópico aberto por uma moça, a Márcia, perguntando se alguém ali era "de Freitas Silvestre". Eu entrei em contato com ela, dizendo que era da família dos Pinecos e tals. Bingo. Ela depois me passou o contato da tia dela, a quem procurei. No final das contas, descobri que somos parentes, até fotos da visita o meu avô a Ilha eu vi. Abaixo minha foto com a minha prima Pineca, a Luisa:

Eu e a Luisa...

Na realidade, um dos pontos altos da minha passagem pela Ilha foi o encontro com a Luisa e sua família, e tudo o que se desenrolou depois: a descoberta dos laços familiares, a visita ao antigo lar dos Pinecos onde tive o privilégio de conhecer a casa onde meu avô nasceu (veja abaixo), a espetada madeirense em um lugar que não é para turistas, o passeio até o extremo leste da Ilha e Porto Muniz... E além da Luisa, do Luis (marido) e da Cristina (filhinha), descobri qe há mais pelo menos três outros Pinecos na Ilha, uma outra prima no Brasil (Gorete, irmã da Luisa, mãe da Márcia) e um primo em Londres (o Zé Manuel, irmão da Luisa e da Gorete). Depois desse re-encontro, acho difícil dizer que não existe destino.

A casa dos Pinecos. A esquerda, a casa onde meu avô nasceus (seta). A direita, sou eu na entrada da casa. Momento raro, pois a casa será demolida em breve para dar lugar a mais um hotel...

Uma coisa que me impressionou na Madeira foi constatar que a Ilha é intensivamente cultivada. Cada espaço de terra é plantado, mesmo no Funchal. Eles plantam em terraços, localmente chamados de "poios", e o clima permite uma diversidade de culturas que só se encontra aqui: próximo ao mar temos as bananeiras e a cana-de-açúrcar, subindo as montanhas começam os vinhedos. E tudo isso feito no braço: a ilha é muito escarpada para permitir o uso de tratores, por exemplo. A irrigação é feita por canais construídos artificialmente que levam a água das nascentes nas montanhas para os poios, daí chamados de "levadas". Abaixo, uma visão dos poios:

Os terraços da Madeira

O grosso da produção agrícola é vendido a Portugal, mas tem muita coisa comercializada localmente, como podemos constatar em uma visita ao mercado dos lavradores no Funchal:

Mercado dos Lavradores. Notem a variedade de produtos

A culinária da Ilha é espetacular e tem sido uma das minhas melhores recordações. Como era de se esperar em uma ilha no meio do mar, e um território lusitano por excelência, a comida típica da madeira são os frutos do mar. Tive a oportunidade de provar pratos que desde sempre povoaram a minha imaginação, como as famosas lapas grelhadas, o atum com milho frito, a espada-preta (foto abaixo) com bananas e, como não poderia deixar de ser, o polvo de ceboladas! Todos os pratos muito bem preparados e de um sabor espetacular... Tenho que confessar uma coisa: a caldeirada que comi na Madeira é a única até agora que superou a caldeirada preparada pela minha mãe (e olha que isso não é pouca coisa...).

Esquerda: Espada-preta (Aphanopus carbo). Direita: o cefalópode Rodrigo plei predando sobre filé de A. carbo com bananas na Madeira. Notem o auxílio luxuoso de um bom vinho branco português...

De quebra fui com a Luisa e o Luis em um restaurante fora da rota turística onde pude apreciar a famosa espetada madeirense, tão popular aqui na Cidade do Cabo mas incomensurávelmente melhor na Ilha, como não podia deixar de ser. Abaixo eu com meus primos no restaurante da espetada:

Eu, Luis e Luisa, na Espetada Madeirense. Só diretoria...

Um passeio imperdível na Madeira são as Grutas de São Vicente, que na realidade, são cavernas. Mas o que essas cavernas têm de tão especial que merecem ser citadas aqui? Bem, são cavernas únicas, pois não são de origem sedimentar e sim vulcânica: foram escavadas pela ação da lava líquida que corria nas entranhas da Ilha quando ainda vulcanicamente ativa, ha alguns poucos milhões de anos. É um dos poucos lugares do mundo onde se pode ver esse tipo de formação geológica.

Galeria da gruta de S. Vicente.

Os portugueses são muito religiosos, católicos fervorosos e constatei isso em todo lugar: há uma igreja praticamente em cada esquina, e imagens de santos, principalmente São José e Nossa Senhora de Fátima são figuras quase que onipresentes nas fachadas das casas:

Santos de azulejos

Cheguei a Ilha em uma época de festas, era época de comemoração de Nossa Senhora do Monte, padroeira da Ilha. A população em peso subiu o monte para agradecer a padroeira, muitos portando os círios (aquelas velas imensas) como pagamento a alguma graça alcançada. A igreja também estava toda decorada com flores de plástico multicoloridas, compondo uma paisagem bem tradicional. Um evento a parte é a festa que ocorre na vizinhança da igreja, uma espécie de quemesse onde as famílias vão, compram carne ali mesmo, espetam em paus de louro fornecidos pelos próprios açougueiros e assam em churrasqeiras comunitárias. Refrescos, a famosa poncha madeirense, e o delicioso bolo-do-caco tabém estão disponívies para a compra.

Igreja de Nossa Senhora do Monte enfeitada para a festa da padroeira. Notem os fiéis carregando os círios.

Outro ponto pitoresco que denota a fé do Madeirense é a Igreja da Nossa Senhora da Paz. Fica bem no alto do monte, quase inacessível. O primo Luis me levou lá e me contou a história do lugar, fascinante: na segunda guerra, submarinos alemães torpedearam Funchal e afundaram alguns navios. Os pescadores se reuniram e pediram a Nossa Senhora que intercedesse pela ilha e acabasse com os ataques. Fato foi que no dia seguinte os alemães se foram. Para pagar a promessa, os pescadores fizeram um rosário gigante com as correntes dos barcos naufragados e pedras do porto de Funchal, levaram o rosário nas costas até o ponto mais alto do monte e lá construiram a Igreja, que ficou conhecida como Igreja de Nossa Senhora da Paz por causa desse evento.

Nossa Senhora da Paz e seu rosário gigante

Por último, não poderia deixar de citar as famosas casinhas da Madeira, minúsculas construções em forma de cabana onde - pasmem, realmente vivem pessoas - e que encantam os turistas. São mais comuns na região de Santana, na costa norte da Ilha, mas mesmo em Funchal se encontra esse tipo de contrução.

Casinhas em Santana

E essa foi a minha primeira viagem a Madeira. Muitas outras ainda farei...

Que Nossa Senhora do Monte (padroeira da Ilha da Madeira) e Nossa Senhora da Ajuda (protetora dos Pinecos) nos abençoe a todos.

Plei


4 Comments:

Blogger Unknown said...

Te amo!

Feliz aniversário Branquinho.

.

12:29 PM

 
Anonymous Anonymous said...

Aí Rodrigo. Que belo post, hem? Tá virando um grande editor...e a viagem sensacional. depois conta mais..
Ronaldo

4:11 AM

 
Blogger Unknown said...

Olá Rodrigo
Mais uma vez visitando seu Blog e com satisfação encontro a Ilha da Madeira, terra do pai!! E, ao contrário de você, tenho um monte de primos legítimos morando por lá, na Freguesia de São Martinho.Rssssss
bj
Margarita
PS. Depois que defendi minha tese, criei um msn novo. Se quiser me adicionar você é um dos amigos do orkut, que não gostaria de perder contato. margarita.rodrigues@hotmail.com

5:20 PM

 
Anonymous Anonymous said...

Escreva mais

6:07 PM

 

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