Wednesday, November 19, 2008

Racismo no Brasil: das causas verdadeiras à hipocrisia política – e porquê eu sou contra cotas


Haiti

Composição: Caetano Veloso e Gilberto Gil

Quando você for convidado pra subir no lado
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque um batuque, um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária
Em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada:
Nem o traço do sobrado
Nem a lente do fantástico,
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for a festa do pelô, e se você não for
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino do primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua sobre um saco
Brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

Da letra de música acima, surge o cerne do problema “racial” brasileiro: o racismo no Brasil não é, e nem nunca foi, somente problema da concentração de melanina na pele, da cor dos olhos ou da textura dos cabelos. É bem mais complexo do que isso. Tanto que somos uma nação de mestiços, onde a união de brancos, negros e índios sempre foi lugar-comum na história do nosso povo. É um problema social, e não racial, como querem alguns. Ou alguém aí duvida que o branco pobre também não sofre o mesmo tipo de preconceito que o preto pobre? Ou o quase-branco? Ou o quase-preto?

Os comodistas, os canalhas e os aproveitadores de plantão vão sempre bradar a mesma ladainha, que esse é um meio de corrigir erros históricos, que é o único meio de incluir as classes menos favorecidas no país, e todo o blá, blá, blá demagógico padrão.

Bom, vamos analisar imparcialmente.

Existe realmente um erro histórico? Sim, parcialmente tem algo errado aí.

Mas porque disse parcialmente? Bem, para quem estudou um mínimo de história sabe que, quem caçava, estocava e comercializava os negros na África com os europeus que administravam as colônias na América eram... os próprios negros. Vejam bem, não estou querendo aliviar a responsabilidade dos brancos europeus nesse contexto todo, mas por outro lado seria hipocrisia excluir a parcela de responsabilidade Africana. A maldade humana, assim como o amor, senhoras e senhores, não tem cor. Penso eu que, se os povos da África não tivessem sido eles mesmos sociedades escavocratas desde sempre e que se tivessem se organizado em estados pluriculturais nos moldes de qualquer estado ocidental que conhecemos, talvez a história tivesse sido diferente de tal e qual a que conhecemos hoje. Ou pior, vai saber...

Esse é o único meio de democratizar a situação social no Brasil?

Não.

E eu reafirmo categóricamente: NÃO.

Na realidade, esse é outro e enorme erro.

Primeiro, porque não se corrige erros históricos da noite para o dia. Essa é a soluçãozinha mágica, hipócrita e eleitoreira que parasitas sociais, ops! digo! que os políticos brasileiros querem lançar mão. Um erro histórico requer um tempo razoável para ser corrigido. E o único – eu repito aqui: O ÚNICO – meio de se conseguir isso é através da educação.

E não estou falando da educação superior, a qual nunca foi o problema no Brasil e que sempre funcionou bem (se bem que com as tentativas incisivas do governo em exterminar com ela, eu não sei até quando isso vai durar, mas isso é assunto para todo um outro ensaio...). É na educação de base, como enfatizam bem Caetano e Gil logo no meio da letra de Haiti:

E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino do primeiro grau

Para os “céticos” de plantão, temos um exemplo vivo disso diante dos olhos do mundo inteiro – o candidato eleito da corrida presidencial estadunidense: Barack Obama. Um negro (ou melhor, mulato, mas a mídia está fazendo vista grossa para esse fato) estar chegando ao principal posto político dos Estados Unidos – esse sim um país racista no sentido strictu sensu da palavra – é o resultado de uma educação igualitária (ainda que aquele país, eu repito, seja racista!). Lá, diferentemente daqui, não existem cotas raciais. Ao cidadão cabe conquistar seu lugar e prestígio na sociedade basicamente através de sua competência pessoal. E o meio (educação democratizada) é dado. Ainda que os EUA estejam 98 atrasados nesse particular – o Brasil teve o primeiro presidente de ascendência africana das Américas, Nilo Peçanha, entre 1909 e 1910 – esse é, com efeito, um grande feito em termos de democracia.

Vão argumentar que no Brasil isso nunca funcionou e que por isso as cotas são necessárias. Lorota. Temos vários, honrosos e valorosos casos de que essa é uma falsa premissa. Por exemplo, o intelectual Rui Barbosa, o escritor Machado de Assis, o Maestro Carlos Gomes, o político e farmacêutico José do Patrocínio, o engenheiro, geógrafo e historiador Teodoro Sampaio, e Antônio Pereira Rebouças Filho o engenheiro que no séc. XIV foi responsável pela construção da Estrada de Ferro de Campinas a Limeira e Rio Claro, da Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá e da rodovia Antonina-Curitiba ou o já citado Nilo Peçanha, presidente da república, eram mulatos. Mas os cotistas de plantão vão voiciferar: ah! Mas não eram negros! Diante desse argumento pífio, eu devo me questionar: quem é racista aqui mesmo? OK, esses exemplos não eram “afro” o suficiente, pois estavam (sic) contaminados com sangue europeu.

Bem, talvez se eu citar o glorioso geógrafo (ha pouco falecido) Milton Santos, será que ele tem melanina o suficiente na pele para sossegar os ânimos dos racistas...ops! digo! os cotistas mais afoitos? Ou quem sabe o negro que comprou sua própria liberdade nos tempos de império e que foi o primeiro presidente do primeiro banco brasileiro (o Banco do Brasil)? Ou o advogado, abolicionista e negro, Luís Gama? Também não posso deixar de citar Juliano Moreira, um dos primeiros médicos negros do continente americano (talvez da história, se pensarmos na medicina nos moldes ocidentais) formado na Escola de Medicina da Bahia, ainda no sec. XVI, que além de tudo lecionava nessa mesma instituição? Ou nosso ex-ministro da cultura, Gilberto Gil (aqui os racistas, ops! digo! os cotistas de plantão vão dar xiliques, pitis e faniquitos gritando: Esse não vale! Ele é Artista!!!! Sim, ele é artista, mas é formado em Administração de Empresas com pós nos EUA e tudo mais. E, antes dele, o pai era médico – e tão negro quanto ele...). Ou Maria José Bezerra? Ou a Marisa, minha saudosa professora de matemática, que é negra também?

Eu pergunto para os racistas, ops! perdão novamente! os cotistas de plantão: haviam cotas raciais no tempo de todas essas pessoas?

O próximo passo dos defensores do racismo... ops! digo! das cotas raciais será: ah! Mas a imensa maioria dos negros continuam excluídos! Bom, e se ao invés de tentar privilegiar uma pequena parcela da população dita “negra” (sim, porque, por mais cotas que sejam inventadas, a imensa maioria dessa população ainda vai permanecer excluída), não democratizamos a coisa e asseguramos a todos o que está escrito na constituição: acesso universal a uma educação pública, gratuita e de qualidade? Para a população excluída não vai ser uma vantagem imediata, mas para seus filhos com certeza será. Os filhos e netos dos hoje excluídos viriam a ser os incluídos de amanhã, da forma justa, correta e honesta de se fazer a coisa.

Criar cotas para isso e aquilo, além de tornar o racismo oficialmente uma política de governo, é uma solução hipócrita, demagógica e que, convenhamos, não reolve nada. Só faz tapar o sol com a peneira. Eu, como pelo menos 80% da população brasileira, provavelmente posso ter também sangue africano correndo em minhas veias. Poderia esmiuçar a minha genealogia, achar um ou vários antepassados negros e alegar aos quatro ventos que sou afro-descendente, segundo as diretrizes do Movimento Negro brasileiro e que, portanto, tenho direito a minha cota: farinha pouca, meu pirão primeiro. E mesmo se não tiver ascendência africana, com certeza tenho ascendência ameríndia, daí poderia requerer a minha cota de minorias do mesmo jeito.

Mas eu não faço isso porque, além de ser uma adesão sumária e inequívoca a política racista e discriminatória do atual governo, da qual não compactuo, mesmo porque eu não faço distinção entre as pessoas por etnia, (1) minha ética não permite e (2) tenho plena segurança na minha competência profissional para pleitear uma vaga de trabalho onde quer que seja...

Mas aí eu me pergunto: e quem não tem nem uma coisa, nem outra (que, infelizmente, não são poucos no nosso país)?

Tristes tempos esses que nós vivemos.

Em tempo: este é um assunto delicado e complexo, e que certamente mexe com os brios de muita gente. Tudo o que escrevi acima é opinião pessoal minha, o que não significa que eu não possa mudar de opinião – isso vai depender, outrossim, do contexto e de razões que possam me levar a pensar diferente (ou não): eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.

Não espero que ninguém concorde 100% comigo, afinal, é apenas minha opinião pessoal. Aos que discordam do que escrevi, eu convido à reflexão. Eu mesmo li um sem número de matérias e ensaios pró- e contra-cotas antes de redigir o meu texto. E se mesmo assim alguém ainda ache indigesta minha opinião (lembrando que eu não obrigo e nem pretento fazer ninguém “engolir” a mesma), só posso incentivar a escrever/filosofar/divulgar o que você(s) acredita(m) que seja o contraponto à minha opinião – se ela for assim tão importante para você(s) ao ponto de precisar ser respondida/questionada/combatida. Só uma coisa eu não abro mão: respeite a minha opnião, assim como eu sempre vou respeitar a sua, mesmo que não concorde com ela.